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Descubra como é o treinamento de um cão-guia, fundamental para uma PCD

22 de Junho, 2022 Descubra como é o treinamento de um cão-guia, fundamental para uma PCD

Com técnicas de reforço positivo, o treinamento inclui uma fase de socialização, treinamento específico e orientação junto à pessoa assistida

"Um cão-guia salva vidas." Foi o que nos disse a funcionária pública Daniela Kovács, que, após um longo período de baixa visão – quando se enxerga pouco e o óculos não é capaz de corrigir –, a perdeu completamente. Fazendo um caminho conhecido durante o dia, período em que ela enxergava melhor, Daniela caiu em um buraco de obras na rua.

O acidente aconteceu quando ela ainda estava em negação de sua deficiência visual. Depois que se entendeu como uma PCD - pessoa com deficiência - e passou a se aceitar melhor, ela optou pelo uso da bengala até conseguir a companhia do cão-guia.

"Eu já queria um cão-guia e fui atrás de escolas de treinamento no Brasil. Descobri que era algo difícil de conseguir – eu, por exemplo, consegui depois de dois anos de espera. Desde então a minha mobilidade é com o cão-guia, o que é bem diferente da bengala, porque o cachorro desvia previamente dos obstáculos para você", diz.

Indispensáveis no dia a dia de uma pessoa com deficiência visual, os cachorros funcionam como olhos em outros corpos. Segundo Daniela, se ela já contasse com ajuda do Ollie, seu golden retriever cão-guia, teria evitado o acidente do buraco.

"Ele está o tempo todo comigo. Estamos trabalhando de casa agora, mas, se eu for ao trabalho, ele vai comigo. Ele me acompanha na aula de yoga e de dança e encontra o melhor caminho para chegar até lá. Se houver um buraco no caminho, eu nem vou saber, porque ele faz a melhor rota", explica.

Ollie é o seu segundo cão-guia. O primeiro foi o labrador Basher, que trabalhou até os 9 anos e oito meses e, em seguida, se aposentou. O seu sucessor agora tem 6 anos e não é somente inseparável de Daniela, como perfeitamente compatível.

Isso porque a seleção de cães-guia para doação a PCDs é feita de forma bastante criteriosa. No Instituto Magnus, ONG que treina os animais e capacita os seus usuários, já são mais de 700 pessoas na fila de espera para receber um cachorro. Estar em primeiro lugar da lista, contudo, não significa ser o próximo a receber:

"É preciso haver compatibilidade entre o cão e a pessoa – é igual à transfusão de órgãos. Nós avaliamos o ritmo de andar, a altura e a rotina do usuário. Conferimos se ela caminha bastante, se utiliza transporte público, como é a casa desta pessoa, etc.", diz Thiago Pereira, coordenador-geral do instituto.

Segundo ele, após o treinamento individual deste cão – que leva cerca de 5 meses –, a pessoa cujo perfil se mostrou compatível tem ainda de treinar junto ao animal dentro do Instituto por um período de 15 dias.

Ao voltar para casa, um dos instrutores acompanha a dupla por mais um período de uma semana para, apenas então, considerá-los prontos para dividirem a vida.

Treinamento “bom pra cachorro”

O treinamento de um cão-guia se inicia quando ele ainda é filhote, na maternidade do instituto. O espaço simula uma casa, com todos os seus estímulos – como barulhos de máquinas de lavar, televisão, rádio, etc. –, e a supervisão de três treinadoras que cuidam dos bichos nos primeiros momentos de vida.

Depois, adentra-se no período conhecido como "socialização": é quando voluntários recebem o animal em sua casa durante um ano para que ele aprenda as regras do convívio, acostume-se à rotina familiar e aos passeios na rua.

"As famílias socializadoras, que são civis voluntários, se inscrevem em nosso site para ficar com esses cães durante um ano, expondo-os na sociedade: às pessoas, a barulhos, cinemas, shopping, transporte público, etc. Uma lei federal garante que estas famílias tenham o direito de levar os cachorros a qualquer estabelecimento comercial", explica Gustavo Ferraz, instrutor técnico de cães-guia no Instituto Magnus.

A ONG também traça o perfil da família e do cachorro: caso seja um animal agitado, eles optam por encaminhá-lo a alguma casa que já tenha outro bicho e que está acostumada com a tutoria; se for um cão mais calmo, escolhe-se uma família tutora de primeira viagem, por exemplo.

Após este primeiro ano, os cães voltam para o instituto a fim de receber treinamento específico. No início, o aprendizado é bastante lúdico, como uma brincadeira. "A gente mostra para o cachorro o que a gente gosta, dando carinho e comida, porque labradores e goldens amam comer. Usamos o reforço positivo com petiscos e carinho", diz Gustavo.

Funciona assim, por exemplo: eles pedem para o cão andar sobre a calçada. Se, em algum momento, ele desce, os instrutores ignoram. Mas, caso ele permaneça lá até o comando final, o animal ganha um petisco e palavras de agrado. Eles aprendem também a desviar de obstáculos, indicar se estes são altos ou baixos e até a desobedecer a um comando, quando percebem que este não é adequado.

Ao longo do processo, os instrutores ficam atentos ao conforto e à disponibilidade deste animal para entender se ele realmente está preparado para o trabalho. O treinamento continua em ambiente rural, cidades com pouco tráfego e, por fim, em áreas mais agitadas, como São Paulo.

Enquanto isso, a equipe do instituto analisa as inscrições das PCDs que desejam um cão-guia, as visitam em casa e entende o seu perfil até o fim da escolinha do cachorro. Quando se encontra o match perfeito, o assistido vai até a ONG para ser treinado junto ao cão, aprendendo a limpar o xixi e recolher o cocô, a brincar com o animal, os comandos verbais e gestuais e a colocar o equipamento básico.

Quando elas retornam para a casa com o cachorro, o instituto faz um acompanhamento – que é vitalício, mas que, no início, é mais frequente.

O trabalho do cão-guia dura por volta de oito anos – depois disso, ele é aposentado e vira um pet comum. De acordo com George Thomaz Harrison, psicólogo e instrutor de cães-guia, é interessante que ele permaneça com a PCD que dividiu todo este tempo com ele ou com alguém da família com quem teve contato ao longo dos anos, uma vez que um laço afetivo também é formado e a separação pode ser dolorosa para o animal.

"Não achamos que é uma coisa muito legal, para um cão que viveu o tempo todo do lado da pessoa, ficar agora sozinho. Por conta disso, a gente procura alguém próximo à pessoa para ficar com o cachorro, que já tinha um relacionamento com ele durante a vida", diz.

Hoje, as raças mais tradicionalmente utilizadas para o treinamento são labrador e golden retriever. "Elas têm uma versatilidade, tanto de tamanho quanto de apelo social e comportamento, que ajuda muito no treinamento", explica George. Fora do Brasil, contudo, são utilizadas mais de 30 raças para o trabalho.

Mais que um melhor amigo: um cão-guia

Para Daniela, é essencial que a PCD que busca um cão-guia já goste previamente de animais, uma vez que a ideia é passar as 24 horas do dia ao lado de um.

"A gente não deixa de ter todas as responsabilidades de um tutor: eu o levo de 3 em 3 horas para usar o banheiro, dou comida, água, coloco as meias nas patas para ele não escorregar quando estou na yoga e escovo os pelos para checar se ele tem algum problema, porque apenas sentindo vou saber", diz.

Ela, que escreveu um livro sobre o seu processo de reabilitação e a companhia do seu primeiro cão-guia, explica que conviver com um animal, por si só, já é um grande aprendizado.

"Mas a autonomia e independência que surge para uma pessoa com deficiência é enorme. Você vê que o cão curte ajudar. O treinamento deles utiliza reforço positivo, então eu elogio muito, dou parabéns, e dá para ver que ele está feliz. Ele até torna as coisas chatas, como ir ao médico, mais divertidas. Eu sinto tudo o que alguém que tem um bichinho de estimação sente, mas ele também me ajuda em coisas que são muito difíceis para mim", comenta.

Outro ponto muito importante e positivo, levantado tanto por Daniela quanto por George, é que o cão-guia "rouba" a atenção alheia, deixando a deficiência em segundo plano.

"Ele elimina a nossa dificuldade. As pessoas olham para ele e falam 'olha que cachorro lindo', para só depois perguntar se eu não enxergo, então a deficiência deixa de ser o aspecto principal da nossa vida", conta Daniela.

Fonte: Revista Casa e Jardim